Vamos ouvir Caetano?
Se em oitenta anos alguém já teve a oportunidade de ser muitos, como disse um provecto Jorge Luis Borges (1899-1986), Caetano Veloso, que completa 82 nesta quarta-feira (7/8), nunca se furtou a sê-lo - artística e ideologicamente. Em “Outras Palavras” (ed. Record, 2022), o jornalista Tom Cardoso inventaria as opiniões políticas do compositor baiano desde a redemocratização, e o resultado é no mínimo curioso. Caetano atacou Tancredo Neves, que nem chegou a assumir a Presidência da República, devido ao ministério que constituiu e o vice que legou; declarou voto em Brizola em 1989, mas também simpatia por Roberto Freire, Ulysses Guimarães, Fernando Collor e Mário Covas, embora acabasse escolhendo Lula no 2º turno. Nos anos 1990, aderiu a Fernando Henrique Cardoso e Ciro Gomes, para depois desaderir; viu nas ideias de Roberto Mangabeira Unger um caminho original de desenvolvimento para o país, e então o esqueceu. Apoiou Marina Silva em 2010, mas surpreendeu-se positivamente com o início do governo Dilma Roussef. Chegou a elogiar escritos de Roberto Campos (!), Olavo de Carvalho (!!) e Rodrigo Constantino (!!!) para, recentemente, converter-se ao pensamento do pernambucano Jones Manoel da Silva, um historiador youtuber e marxista. Ah, sim, tentou convencer Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF, a concorrer à Presidência, e, ainda que o livro não registre, elogiou Sepúlveda Pertence, também da Suprema Corte, a ponto de considerá-lo merecedor de apoio em uma eventual candidatura. Ufa!
Tom Cardoso, em entrevista à época do lançamento da obra, definiu seu biografado como “camaleônico”, o que soou demasiado condescendente, tamanha errância ideológica. Mas, pensando bem, o que diferencia as opiniões de Caetano das da maior parte de nós, se historiássemos nossos votos, afeições e desafeições políticas nesses 40 anos de democracia? Quem, nesse período, já não abraçou e repeliu candidatos, partidos e personagens de espectros diversos? O zigue-zague das apreciações caetânicas é apenas representativo de nossas ilusões e desapontamentos, e da própria impossibilidade da política de atender aos reclamos e fantasias de indivíduos e sociedade.
Alguma lição aí? Vejo duas. A primeira é que Borges tinha razão: seremos tantos quantos anos vivermos, porque preferências políticas ou quaisquer outras não se dão a priori nem são estanques; afirmam-se e se moldam ao sabor dos fatos, interesses de momento e decisões que a vida cidadã exige. Sabemos o que somos porque temos de opinar e escolher, e se alguns se orgulham de convicção e coerência, a maior parte não tem pudor de oscilar entre a ilusão e o pragmatismo.
O segundo é que, se zanzamos um bocado, provavelmente ninguém ficou sabendo, a não ser nós mesmos, pois nunca nos perguntaram o que achávamos das coisas - ao contrário de Caetano, sempre disponível e verborrágico. O jornalista Claudio Abramo (1923-1987) queixava-se dessa tendência da imprensa de seu tempo: “frequentemente leio declarações da atriz Regina Duarte sobre economia. A mim não interessa o que ela acha (...). Não interessa o que o Zico tem a dizer a respeito da Antártida (...). Os jornais têm de ajudar a colocar ordem no país; esse caos em que vivemos é um pouco consequência da abordagem disparatada dos jornais” (“A regra do jogo”, Companhia das Letras, 1988, p. 229-230. Grifos meus). Vê-se que os notáveis da era pré-internet, à la Caetano, não poupavam palpites, assim como os milhões de “articulistas” amadores que ocupam as redes sociais hoje em dia – para desagrado daqueles saudosos do cerceamento à opinião dos menos célebres. Analisando criticamente, ela é tão pior assim? A “curadoria” da antiga grande mídia era muito superior à liberdade quase ilimitada dos Facebooks e Twitters da vida?
Adriana Calcanhotto convocou em uma de suas canções: “Vamos comer Caetano”. Não é preciso. Já o temos dentro de nós.
Artigo originalmente publicado no Diário de Santa Maria, em 6 de agosto de 2024.
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