O capital da tribo
- André D'Angelo
- 1 de abr.
- 2 min de leitura
Há uma crença exagerada nos poderes da educação formal?
Quando se mudou para o Brasil, em fins dos anos 1980, o psicanalista italiano Contardo Calligaris (1948-2021) surpreendeu-se com a crença local nos poderes da educação. “(...) [D]os progressos da escola todo mundo espera o milagroso surgimento de um cidadão novo”, pois no país “(...) se respira uma verdadeira fé nos efeitos possíveis do ensino”, escreveu ele em “Hello Brasil!” (Cia. das Letras, 2021, 2ª edição, p. 78).
Repare: Calligaris não atribuía aos brasileiros uma aposta de que o sistema formal de instrução tornaria crianças e adolescentes preparados para, por exemplo, tirar o país do subdesenvolvimento econômico, mas sim para forjar o “cidadão novo” – hipotético detentor de valores mais nobres que os adultos daqueles tempos.
De lá para cá, a convicção coletiva permanece. Mudou apenas a maneira como é endereçada ao sistema escolar. Em vez de uma ideia vaga de ética e sociabilidade, ela se transmutou em demandas mais específicas, abrangendo as preocupações do nosso tempo: ambientalismo, comportamento no trânsito, combate ao bullying e aos vários tipos de preconceito. Todas as pautas que, efêmeras ou duradouras, pareçam fundamentais para a cidadania atual, são vistas como merecedoras de um naco do tempo curricular entre a pré-escola e o ensino médio. Alunos de todas as idades, imagina-se, seriam tábulas rasas nas quais é possível inscrever um futuro melhor.
Trata-se de uma expectativa contraditória. O desempenho dos estudantes brasileiros nos testes padronizados internacionais costuma ser inferior ao da média mundial, mesmo entre os alunos de colégios privados. Por que crianças e adolescentes de hoje se tornariam “pessoas melhores” frequentando o mesmo sistema escolar que se mostra insuficiente para dotá-los de habilidades em matemática e leitura?
Talvez por uma conveniente transferência de responsabilidade. Calligaris se espantava em ver como no Brasil “as crianças são adoradas – ainda que não se saiba educá-las” (p. 17), numa referência óbvia às famílias. Daí que se delegue tanto à pedagogia institucionalizada.
Um fenômeno que não é exclusivo do país, faça-se justiça. Em “Os horizontes” (LP&M, 2023), dois ex-presidentes uruguaios foram inquiridos a respeito do assunto: “a educação não pode cuidar de tudo”, exaltou-se o entrevistador depois de arrolar uma série de pretensas responsabilidades de professores e pedagogos. Julio María Sanguinetti corrigiu-o: “você está imaginando matérias, mas a educação é a família, é o bairro, é a sociedade em que se vive”. José Pepe Mujica complementou: “a educação é o capital da tribo. Que pode ou não tê-lo”.
Resta saber se a tribo brasileira o tem.
Artigo originalmente publicado no Diário de Santa Maria, em 1º de abril de 2025.
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