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O Aleph de Betinho

Se a vida do sociólogo mineiro Herbert de Sousa (1935-1997) fosse uma esfera em um ponto de observação, como aquela que Jorge Luis Borges imaginou no sótão de uma casa na calle Garay, em Buenos Aires, dela talvez não se pudesse enxergar “o inconcebível universo” descrito pelo escritor argentino em seu conto célebre, mas, ao menos, parte da trajetória da esquerda brasileira na segunda metade do século 20 - e, quiçá, um tantinho dos desafios globais que esperam por mobilização ainda nos dias de hoje.


Betinho, apelido pelo qual ficou nacionalmente conhecido, recentemente homenageado com uma estátua no bairro de Botafogo, no Rio, e alvo de uma série biográfica da Globoplay, militou em organizações clandestinas durante a ditadura, exilou-se e retornou ao país beneficiado pela Lei da Anistia, em 1979. A partir daí, tomou um caminho diferente do de seus contemporâneos, ao optar pela criação de um instituto de pesquisa econômica e social, o Ibase, em vez de se engajar nos nascentes partidos políticos da reabertura.


Parecia, ali, intuir os limites da política tradicional. Imiscuída no dia a dia de negociações, disputas e miudezas típicas de plenários e gabinetes, boa parte dos oriundos de movimentos de oposição ao regime militar, ora ocupando cargos públicos em meados dos anos 1980 e 90, perdera a ligação com as ruas e com a realidade mais profunda do país. Betinho, embora não fosse um andarilho, servia-se da ciência para dar número à emergência social visível a olho nu: 33 milhões de famintos não esperariam pela agenda de congressistas e palacianos.


Daí nasceu a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” (1993), campanha de doação de alimentos que o celebrizou. Tratou-se de um raro momento de mobilização nacional catalisado por uma única figura pública, cujo paralelo, embora não em dimensão ou importância histórica, houvera apenas com o impulso desenvolvimentista liderado por Jucelino Kubitschek, nos anos 1950. Com a diferença de que Betinho, soropositivo há quase uma década, evocava uma figura quase mítica a pairar incólume sobre o mundinho da democracia burguesa, espécie de realidade paralela à do país.


Paradoxalmente, por mais que arrecadasse donativos e emocionasse um país há muito insensibilizado pelo sofrimento, a iniciativa não deixava de ser um sinal de fracasso, ou, ao menos, de capitulação. Um ex-integrante da Ação Popular (AP), cuja juventude dedicara à utopia de mudar o mundo, resignava-se a dar escala nacional e a tornar mais eficiente o velho assistencialismo, prática histórica de centros comunitários e entidades religiosas - seus parceiros no projeto, por sinal. Embora motivada por uma ética cidadã inegável, havia naquilo algo de desolador também: tudo pelo que passara o Brasil tinha redundado em tão pouca imaginação ou capacidade de transformação concreta, quase uma confissão de incompetência de toda uma geração.


O tempo acentuaria este sentimento. A série da Globoplay lembra que a campanha contra a fome era a primeira de uma espécie de trilogia, que envolvia movimentos pró-emprego e reforma agrária. Nenhuma das outras duas decolou, e Betinho sabia os motivos. Era preciso estar no poder para dar o passo seguinte, o que ocorreria apenas com os governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010). E, naturalmente, submeter-se à realpolitik.


Sabe-se das concessões que ambos fizeram na Presidência, e quantos dos companheiros de luta armada de Betinho, quando no governo, deixaram-se corromper, derrubando qualquer fantasia de superioridade moral. O próprio sociólogo, aliás, já fora flagrado recebendo doações do jogo do bicho para sua ONG de defesa dos portadores de HIV, numa espécie de antecipação das desilusões que adviriam.


Em declaração recente, o ex-presidente uruguaio e ex-guerrilheiro tupamaro José Pepe Mujica, que militou na mesma época do irmão do Henfil, disse que o Uruguai “necessita 10 ou 15 anos de crescimento superior a 4%” e “gastar uma fortuna para fazer frente às suas dívidas sociais”. Para isso, tem que “multiplicar nossa economia” e “sacudir as empresas públicas”, nas quais deve vigorar “um comando profissional” que busque “mecanismos que comprometam o interesse e o bolso daqueles que trabalham ali” (El País Uruguai, 09/01/24). Se diagnóstico e prescrição semelhantes - quase tecnocráticos, dada a biografia do autor - fossem dirigidos ao Brasil de hoje, um calejado Betinho discordaria? Ou, vivo, voltaria seus esforços às mudanças climáticas, cujo envolvimento popular lembra o da Ação Contra a Fome: máxima disposição em contribuir com mínimos esforços a fim de aplacar consciências pesadas, sem nenhuma perspectiva de pressão por políticas públicas ou sacrifícios pessoais verdadeiros?


Essas respostas nem o Aleph poderia oferecer.


Artigo publicado no Jornal Literário Sarau, em outubro de 2024.


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