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Do ócio ao tédio

Ou: por que a teoria de Domenico de Masi não se confirmou?


Morto há um ano, em 09 de setembro, Domenico de Masi legou-nos o conceito de ócio criativo. Basicamente, a ideia de que a sociedade contemporânea não se assenta mais no trabalho, e sim no tempo livre. E de que o próprio labor, menos manual e mais cerebral, exige de seus praticantes habilidades diferentes daquelas que caracterizaram seus homólogos da era industrial, calcadas na repetição e na racionalidade. Daí a profecia do sociólogo italiano: a vida poderia se tornar uma inédita intersecção entre trabalho, estudo e ludicidade em permanente retroalimentação.


Quase 25 anos depois da publicação de “Ócio Criativo” no Brasil, é de nos perguntarmos por que o futuro idealizado por de Masi não se confirmou. Queixas quanto à falta de tempo e a carga de trabalho são quase unânimes entre a população economicamente ativa, enquanto o descanso verdadeiro parece restrito aos 30 dias anuais de férias regulamentares.

Qual o motivo? Arrisco três explicações complementares.


A primeira: a substituição do trabalho manual pelo mecanizado pode ter ajudado as empresas a se tornarem mais produtivas, mas a mão de obra tradicionalmente encarregada de sua execução, geralmente menos qualificada, não encontrou ocupação equivalente em outros setores econômicos, também colhidos pela automação. E migrou para atividades da chamada economia gig, como entregas em domicílio, condução de carros de aplicativo etc. Todos tão ou mais exigentes que os empregos de carteira assinada em matéria de dedicação e carga horária, porém com menos garantias. O precariado, enfim.


Segunda explicação. Os profissionais mais qualificados, aqueles que constituem a elite da mão de obra, por necessidade econômica, ambição ou insegurança, acabam atrapados às demandas do escritório porque boa parte do trabalho que realizam é imaterial e depende de sinalizações ostensivas: horas extras, e-mails no fim de semana, disponibilidade permanente no WhatsApp. Ou seja, tudo aquilo que envolve o gerenciamento de impressões voltado à manutenção do emprego e à candidatura a promoções internas, e toma tanto tempo e energia física e psíquica quanto “trabalhar de verdade”.


Finalmente, a terceira razão. O tempo livre, hoje, seja fragmentado ou contínuo, foi sequestrado pelas telas. O scroll pelos sites de notícia e pelas redes sociais captura a atenção parcial das pessoas de modo a torná-las alheias ao que ocorre à sua volta, com um adendo pernicioso: ao mesmo tempo em que não se faz nada, os olhos fixos no celular impedem a divagação, matéria-prima da criatividade. Trata-se da modalidade de tédio típica da nossa época: alienada, indiferente, quase zumbi.


Assistiremos em algum momento as expectativas demasianas serem cumpridas? Bem, diferentemente da automação, que ceifou empregos da parte baixa e intermediária da pirâmide laboral, a Inteligência Artificial (IA) e a robotização ameaçam substituir os trabalhadores de todos os níveis de qualificação. Sobraria ócio, portanto – mas de criativo ele não teria nada.


Artigo originalmente publicado no Diário de Santa Maria, em 11 de setembro de 2024.



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