30 anos sem Ayrton Senna: o poder do mito
Piloto brasileiro encarnou o herói nacional por quase uma década e ainda hoje é reverenciado
Se o homem é ele e suas circunstâncias, como dizia Ortega y Gasset, um mito é ele e as condições de sua produção. Ao se completarem três décadas da morte de Ayrton Senna, em 1º de maio, cabe analisar o significado do piloto brasileiro para o país e o papel da mídia em sua elevação ao status de ídolo.
Ou seria de herói? As gerações mais novas talvez ignorem a importância de Senna para o Brasil do fim dos anos 1980 e início dos 1990, quando ele encarnava à perfeição o papel mitológico tal qual definido por Joseph Campbell (1904-1987): o sujeito que vive para nos redimir. A cada domingo de grande prêmio, Ayrton ia às pistas tentar reerguer uma nação fracassada e que deixara de encontrar alento nos esportes. Desde a segunda metade da década de 1970 envolto em sucessivas turbulências econômicas, políticas e sociais, o Brasil já havia visto sua ilusão de superioridade futebolística ser desmentida em quatro Copas do Mundo, e se decepcionado com a ascensão incompleta, visto que não vitoriosa, da geração de prata do vôlei masculino. Some-se a isso promessas frustradas de alguma normalidade monetária, como o Plano Cruzado, em 1986, e mobilizações populares sem contrapartida institucional, caso das Diretas Já, de 1984, e o cenário era de permanente desalento.
Senna, diferentemente disso, vencia no primeiro mundo (em corridas na Europa e no Japão), contra o primeiro mundo (outras equipes e pilotos, quase todos europeus) e, às vezes, até contra “o sistema” (a Federação Internacional de Automobilismo e seu presidente, Jean-Marie Balestre). Ou, ao menos, era essa a narrativa que construía com auxílio da mídia, sua parceira desde as categorias de base na Europa. Tão logo estreou na Fórmula 3 inglesa, passou a contar com uma assessoria de imprensa e a se esmerar no relacionamento com jornalistas, especialmente brasileiros. Fazia-se notar e ser notícia, a ponto de conquistar aparições incomuns nas telas da Rede Globo quando era somente uma promessa juvenil – enquanto outro brasileiro, Nelson Piquet, já brilhava na principal categoria do automobilismo.
Piquet, contudo, não se prestava ao circo midiático e publicitário. Deliberadamente antipático no trato pessoal, não concedia brechas que estimulassem qualquer adoração. Senna, ao contrário, vislumbrava o papel de herói nacional esperando por um ator e, nos ensaios – seus primeiros quatro anos de Fórmula 1, com equipamento inferior ao dos rivais -, saíra-se muito bem ao interpretá-lo. Especialmente em 1986, quando, por acaso, tomou a bandeira brasileira de um torcedor e celebrou a vitória no circuito de Detroit, nos EUA, segurando-a dentro do cockpit. Viraria sua marca registrada.
O resultado de temperamentos e ambições díspares não poderia ser mais curioso: embora Piquet ostentasse três títulos mundiais ao fim de 1987, estavam em Senna as atenções e as simpatias da mídia e dos torcedores. Suas vitórias nunca aparentavam ser cerebrais ou acidentais, e sim épicas – na chuva, vindo das últimas posições, com o carro avariado –, e fruto único do talento pessoal. A Fórmula 1, para o leigo, é um esporte individual, não coletivo; projetistas, engenheiros e mecânicos pouco importam, quase invisíveis que são. Ao triunfar nela, Senna parecia sugerir que transformações dependiam única e exclusivamente de cada pessoa, cumprindo a prerrogativa mitológica de nos ensinar a lidar com a realidade.
A reação catártica da população à sua morte acabou por obscurecer um simbolismo interessante. Poucos meses depois da fatalidade, o país debelaria a inflação e voltaria a ganhar uma Copa do Mundo. Ambas, curiosamente, vitórias coletivas. A primeira, numa concertação político-tecnocrática, e a segunda, por meio de uma seleção desacreditada que entrava em campo de mãos dadas, num sinal de primazia do grupo sobre as individualidades. Senna passava o bastão a um país reesperançado, como se tivesse cumprido sua missão. Se mitos constituem uma forma de terapia para males coletivos, como escreveu Carl Gustav Jung (1875-1961), o Brasil acabava de receber alta.
Haveria espaço para um personagem como ele nos dias de hoje? Parece improvável, embora mitos se atualizem com a necessidade dos tempos. A era das redes sociais é muito mais das celebridades, que vivem para si, do que dos heróis, que vivem para os outros. Além disso, nenhum meio de comunicação detém hegemonia semelhante à da Rede Globo naqueles anos. Tampouco o Brasil é igual. O país não cultiva ilusões redentoras como as de três ou quatro décadas atrás, ou, quem sabe, não as delega à esfera do esporte e do espetáculo. Está mais maduro e, talvez, mais cínico - mas sobretudo, melhor.
“Ao morrer cedo, Senna revestiu sua vida com uma veneração romântica que o protegeu de envelhecer e de acertar as contas com seu passado ou futuro”, escreveu o jornalista inglês Malcolm Folley em livro a respeito do tricampeão e de seu antagonista, Alain Prost. Folley não se referia, evidentemente, a eventuais erros técnicos, devidamente minorados pela cobertura chapa-branca da Globo, mas a sua postura agressiva na pista, quase acintosa, e em alguns momentos francamente perigosa. “Ayrton corria dentro dos limites que ele mesmo estabelecia (...), sem arrependimentos e desculpas”, completa o autor. A morte precoce evitou o desbotamento de suas façanhas esportivas frente aos recordes de Michael Schumacher e Lewis Hamilton, donos de sete títulos mundiais cada um. Ambos, no entanto, foram e são pilotos, não heróis. Por mais que mantenham atividades filantrópicas ou ativistas, não transcendem a profissão; não estão cobertos pela mística. Senna ocupava um lugar no imaginário. E como o poder de um mito reside mais em sua eficácia do que em sua veracidade, ainda encontra eco nos dias de hoje. “Um herói, na verdade, nunca morre. Mas nós estamos de luto”, escreveu João Ubaldo Ribeiro no dia seguinte ao acidente, a mesma segunda-feira em que “A Voz do Brasil” foi aberta com o “Tema da Vitória”, e não “O Guarani”.
Embora somente o Brasil tenha reservado o pesado fardo de salvador da pátria a Senna, seu prestígio no exterior não é pequeno. Alhures, conserva a aura de esportista de exceção, redefinidor de parâmetros do automobilismo e ícone incontornável do esporte a motor. A pista de Ímola recebe, a cada 1º de maio, dezenas de fãs de diversas nacionalidades que deixam flores e mensagens nas telas da curva Tamburello e aos pés da estátua que o homenageia. A internet está repleta de imagens de tatuagens em alusão ao piloto.
Daí que a revista britânica F1 Racing tenha resumido assim, em matéria de capa sobre os vinte anos de sua morte: “Senna Forever”.
Artigo originalmente publicado no Caderno de Sábado, Correio do Povo, de 27 de abril de 2024.
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