Consumismo e desafios da sustentabilidade
- andredangelodomini
- 1 de fev. de 2010
- 9 min de leitura

Um artigo recente do jornalista Irineu Guarnier Filho em Zero Hora (17/01/2010) provocou intensa repercussão. Nele, Irineu atacou os padrões de consumo atuais e alertou para os desequilíbrios ambientais que vêm causando. Zero Hora aproveitou para usar o texto como gancho para um debate, perguntando: “você acredita que é possível ser menos consumista numa sociedade na qual todos os apelos induzem ao contrário?”.
As respostas publicadas se dividiram. Mas nenhuma contrariou o argumento central de Irineu: o consumismo está destruindo o planeta. De imediato, o conceito de sustentabilidade vem à mente como a solução obrigatória e impreterível para o problema. “Consumo sustentável”, “economia sustentável”, o que seja: tudo o que disser respeito a colocar um freio na velocidade de utilização dos recursos naturais e na expansão das vontades individuais é entendido como capaz de restabelecer a harmonia entre homem e meio-ambiente – e quiçá entre os próprios homens.
Mas, então, se há um mal (o consumismo) cujas conseqüências são consideradas danosas, e a ele já foi prescrito um remédio (a sustentabilidade), por que se vacila tanto em seguir o tratamento? Por que os padrões de consumo não recuam, as empresas não rompem o paradigma produtivista e os governos não empreendem esforços nesta direção?
Existem dois motivos, basicamente. E compreendê-los é fundamental para que militantes da sustentabilidade consigam, de fato, sensibilizar a sociedade para os problemas socioambientais decorrentes dos parâmetros atuais de progresso material.
O primeiro é que o consumismo não é uma “doença” fácil de ser identificada. Numa definição simples, poderíamos afirmar que o consumismo é o consumo em excesso. “Excesso”, pontuam os defensores do chamado “consumo consciente”, é a compra que vai além do necessário, que atende apenas a “desejos e caprichos”. O consumismo combate-se “comprando somente aquilo que se precisa”. De imediato, fica patente a precariedade do diagnóstico: “necessidades” e “desejos” não são conceitos definitivos, indiscutíveis. Pelo contrário; são bem abstratos, indefinidos, quase pessoais. À exceção das necessidades físicas (alimento, abrigo, sono, sexo), todas as demais são culturalmente construídas, de modo que necessidades ou desejos de consumo são tão verdadeiros e legítimos quanto quaisquer outros. O consumo é, em nossa sociedade, uma resposta a questões humanas, e não mero canal de suprimento de carências físicas. É um meio pelo qual a sociedade contemporânea transaciona significados, suprindo menos suas urgências materiais do que simbólicas. De nada adianta falar em “necessidades” e “supérfluos”, ou em “comprar apenas o que se precisa”: não é disso que o consumo trata.
Segundo motivo: além de não haver certeza sobre do que trata a doença, não há sequer consenso de que ela exista. O consumismo não ocorre contra a vontade das pessoas. Ele representa, hoje, a vontade das pessoas. E mesmo que todos prontamente se engajem em discursos anticonsumistas, são poucos os que realmente mudam seu padrão de vida em função de uma pretensa consciência. Por que? Voltamos ao parágrafo anterior: porque cada um tem a sua visão do que seja “consumismo” e “exagero”, já que cada um entende “necessidade” e “desejo” de maneira diferente. O discurso de desaprovação ao consumo é forte, genérico e amplo o suficiente para ganhar a simpatia e a inércia de todos. Mesmo o mais ferrenho crítico do consumismo atual, toda vez que submetido a algum questionamento sobre suas próprias práticas, responde com base em justificativas que, evidentemente, o eximem de responsabilidade, transferindo-a para os outros. Todos temos nossas próprias razões para dirigirmos carros que poluem, acumularmos roupas e mais roupas no armário, ligarmos vários eletrodomésticos ao mesmo tempo ou adotarmos sem remorsos as convenientes embalagens plásticas de decomposição lenta.
Há um agravante adicional. Nas nações em desenvolvimento, como o Brasil, movimentos voluntários de moderação no consumo são ainda menos prováveis, pois populações emergentes tendem a idealizar o padrão de vida dos países ricos, superdimensionando os benefícios do capitalismo. O consumo, entre populações pobres ou recém saídas da pobreza, funciona como uma forma de empowerment, de exercer um controle inédito sobre suas próprias vidas, historicamente marcadas pela privação e pela falta de opções. Nos países ricos – ou nas classes mais altas dos países em desenvolvimento –, a liberdade de escolha relacionada ao consumo é um fator do cotidiano, ao qual não se confere atenção, visto que entendida como permanente e inalienável. Mas, para os pobres, é uma novidade fundamental que lhes ajuda a desenvolver uma identidade pessoal e um senso de pertencimento ao coletivo. Não surpreende que para estas pessoas o remédio da sustentabilidade soe como uma injusta e oportunista tentativa de tolher conquistas há muito almejadas, tal qual uma ameaça de apagar as luzes tão logo se tenha conseguido ingressar, após muito tempo e esforço, no salão da festa.
Outro indicador forte das limitações da crítica ao consumismo é o chamado “consumo verde” ou “consumo sustentável”. Com raras exceções, produtos e serviços que têm nesta sua característica primordial têm avançado a passos muito lentos no mercado. O consumidor não é exatamente atento a atributos ambientais dos produtos que consome, e não apenas isso: é bastante alheio a questões éticas de maneira geral, como exploração de trabalho infantil ou envolvimento das corporações em episódios de corrupção. O consumidor “verde” ou “ético”, a despeito de muito do que se tem dito, é ainda mais um mito que uma realidade.
Um fim aos chavões
Para de fato endereçar um debate produtivo dos problemas ambientais e sociais decorrentes dos padrões de consumo atuais, há que se abandonar todos os clichês a ele relacionados: o moralista (que ataca o consumo de maneira irrefletida); o naturalista (que vê o consumo apenas como resposta a necessidades físicas); e, claro, o hedonista (exaltado pela publicidade, e que mostra o consumo apenas como sinônimo de prazer).
Há, também, que se abandonar as duas visões consagradas e quase caricatas sobre o consumidor: a de uma vítima das empresas e do marketing; e a de um agente soberano e exigente, um “rei” ao qual todas as empresas querem agradar. Salvo casos de propaganda enganosa, o consumidor não é vítima de nada. Ele é muito cônscio do jogo de imagens e fantasias do consumo, e nele ingressa de bom grado. Sabe da ilusão e a ela adere espontaneamente. Não é, tampouco, um “rei” exigente e plenamente informado. É sim um agente que detém uma quantidade limitada de informações sobre o que consome e que mantém, com as empresas, uma relação ao mesmo tempo cooperativa e adversarial: os interesses das partes tanto podem coincidir quanto divergir, e é impossível garantir 100% de transparência às intenções e às ações de lado a lado.
Além de esquecer estes clichês, há que, sobretudo, encarar um fato: a proposta da sustentabilidade é essencialmente impopular, porque representa um golpe no individualismo contemporâneo, alicerce da sociedade de consumo. A sustentabilidade é uma causa complicada de “vender” para o consumidor (e, por conseqüência, para empresas e governos), pois diz respeito a restringir vontades pessoais imediatas em nome de benefícios coletivos futuros – sendo que os sacrifícios são muito claros (usar menos o carro, deixar de comprar mais uma calça jeans), enquanto os ganhos serão perceptíveis somente a longo prazo (redução do efeito estufa, diminuição do desmatamento).
O desafio
Como então enfrentar com sucesso o desafio de difundir e gerar adesão à causa da sustentabilidade?
Há necessidade de atuação em três frentes complementares, visto que todas elas são apenas parcialmente eficazes.
A primeira é, provavelmente, a mais desenvolvida de todas, mas ainda assim muito incipiente. Diz respeito à inserção da sustentabilidade na lógica do sistema econômico atual, através de produtos orgânicos, ecologicamente certificados, socialmente responsáveis, etc. É o chamado „consumo sustentável‟. O alerta que se deve fazer a essa abordagem é que, à diferença de outras reivindicações, a sustentabilidade não pode simplesmente fazer parte do universo empresarial e midiático, tornando-se uma causa-produto tal qual um “Criança Esperança” ou um “Câncer de Mama no Alvo da Moda”. Isso contradiz sua própria essência, que é a da mudança do paradigma de desenvolvimento material vigente. Resumir sua bandeira à criação de “consumidores sustentáveis”, “consumidores verdes” ou qualquer rótulo do gênero é apenas inserir mais uma modalidade de clientes (ou segmento, para usar o jargão do marketing) na lógica do capitalismo tradicional. Trata-se somente de imprimir um carimbo verde aos parâmetros atuais de progresso material, uma fuga do enfrentamento das questões-chave que ela mesma propõe. Porém, sendo bastante pragmático, é melhor estimular o consumo sustentável do que o não-sustentável – ainda que sob risco de oferecer ao mercado a matéria-prima cultural da qual ele mais gosta: o simulacro da diferença e da contestação, mais útil para aplacar consciências em crise do que para gerar resultados práticos.
A segunda frente é política – entendida aqui tanto no sentido tradicional, de caráter partidário, quanto no sentido amplo, de negociação e busca de acordos entre atores sociais. Em tempos de desilusão com partidos e representantes políticos, pode soar um contra-senso, mas não é. O capitalismo é marcado por uma certa dubiedade ética no que se refere às relações entre empresas, consumidores e demais agentes. Não existem julgamentos definitivos sobre quaisquer temas – existem, sim, percepções e interpretações variadas, evocadas à luz das conveniências pessoais e das circunstâncias culturais. Neste cenário, as pessoas tendem a delegar a duas instâncias a competência para julgamento do que venha a ser certo e errado: o mercado e as leis.
Estes são os grandes tribunais das sociedades democráticas e é com foco neles que se deve agir, através de grupos de pressão e partidos políticos. Pressionar por mudanças legais e promover acordos entre representantes de agentes econômicos das principais cadeias produtivas em prol de práticas mais sustentáveis – expressas em leis, normas e até em códigos de autoregulação - são caminhos que podem ajudar a sociedade a formar noções mais claras do que venha a ser certo e errado no território da sustentabilidade. A ambigüidade ética das interpretações não vai sumir, mas tende a diminuir; leis e códigos funcionam como consensos aos quais as pessoas recorrem na hora de avaliar um fato. Quanto mais os defensores da sustentabilidade puderem influenciá-los e monitorá-los, melhor.
Finalmente, há uma terceira frente. Ela parte do princípio de que a sustentabilidade é uma reivindicação de fundo moral (e portanto, cultural), e não uma mera retórica mercadológica. Ela entende que recursos naturais e valores humanistas não podem ser dilapidados em nome de uma visão distorcida do que venha a ser “progresso”. Esse é seu ideal, seu norte moral. E, ao contrário do que muitos imaginam, não vivemos uma época de amoralidade (ou seja, de ausência de parâmetros éticos); “nas sociedades, há pluralidade moral, não niilismo moral”, lembra o filósofo francês Gilles Lipovetsky. A moral da sustentabilidade não enfrenta, portanto, um cenário avesso aos ideais; enfrenta, sim, a concorrência de outros ideais, entre os quais o da afluência material como sinônimo de felicidade e sucesso pessoal.
Se o consumo é um fator de ordem cultural, deve-se entender a sustentabilidade como um elemento igualmente cultural, voltado ao desenvolvimento de uma nova visão de mundo, à proposição de um modelo de vida concorrente ao materialista. Se há uma ideologia que afirma que o valor de uma pessoa se mede pela quantidade de bens que possui, há que se incentivar a construção de outra, tão forte quanto, que estimule o desenvolvimento de dimensões de prazer, satisfação pessoal e reconhecimento do indivíduo pelos seus pares que não apenas através da acumulação material.
Evidências favoráveis neste sentido não faltam: pesquisas mostram que pessoas e países menos materialistas – ou seja, que atribuem menor importância aos objetos – têm maior índice de felicidade e satisfação com a vida. O que não significa dizer que sejam anticapitalistas ou coisa do gênero; embora o consumismo seja fruto da economia de mercado, não é seu subproduto inevitável. Existem economias de mercado nas quais o mundo material não constitui o referencial mais forte de reprodução cultural e socialização.
Religião, família, atividades intelectuais e artísticas, o que seja: grupos de interesse aos quais as pessoas possam se filiar e nos quais o ethos dominante não seja o do progresso material são bem-vindos na tentativa de mudar os parâmetros de felicidade de cada um, tornando-os menos materialistas. Nossos desejos e necessidades dependem de nosso contexto, do ambiente no qual convivemos. Se estimularmos a convivência em espaços nos quais as posses sejam menos valorizadas, é mais provável que as noções do que sejam nossas necessidades e vontades mudem. Para que ideologias contrárias à hegemônica prosperem, mesmo em pequenos grupos, elas precisam do respaldo mútuo oferecido pelos seus integrantes.
Mas aqui cabe um alerta: uma perspectiva menos materialista da vida não significa, necessariamente, zerar o impacto ambiental decorrente das ações humanas. Qualquer tipo de ideologia ou visão de mundo pode valer-se de objetos para tangilbilizar seu ethos e modus operandi. Pegue-se a religião, por exemplo: todo culto é rico em objetos que, em última instância, são produtos os quais as pessoas podem acumular em seu afã religioso. Não é possível afirmar que trocar iPods por Bíblias diminua a pegada ecológica de alguém. Pode-se, tão somente, supor que isso venha a ocorrer.
O maior obstáculo que os defensores da sustentabilidade enfrentam pode não ser a teimosia das empresas, a omissão dos governos ou a alienação das pessoas, e sim a incompreensão do papel que o consumo desempenha na sociedade atual. O consumo diz respeito menos ao movimento de mercadorias do que ao de conhecimentos, idéias, símbolos. A sustentabilidade será melhor defendida se resistir à tentação do discurso autoritário e moralista que pré-determina o que é aceitável comprar e usar, esquecendo que estas não são questões absolutas, e sim relativas. Seu desafio exige mais inteligência do que força bruta.
