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Apelando ao consumidor ou ao cidadão? Os desafios do “consumo ético”

  • andredangelodomini
  • 1 de set. de 2008
  • 6 min de leitura

Boa parcela do interesse que move empresários e gestores a se engajar em movimentos pela ética nos negócios decorre da esperança de que, mais cedo ou mais tarde, a correção moral se tornará um diferencial para suas empresas aos olhos do consumidor. Supõem eles que os consumidores valorizam – ou passarão a valorizar em breve – o comportamento ético das companhias, boicotando produtos e serviços que, por algum motivo, firam a lei e a moral, e privilegiando aqueles que comprovadamente adotam uma postura de integridade e correção.

Trata-se de uma premissa razoável e com algum fundo de verdade. De fato, desde a década de 60 têm aumentado as pressões da sociedade sobre o mundo corporativo. A crescente disponibilidade de informações e a elevação do nível educacional da população nas últimas décadas incrementaram a vigilância sobre as empresas, obrigando as corporações a uma transparência inédita em suas práticas.

Apesar disso, a disposição do consumidor em recompensar o comportamento ético empresarial permanece mais uma idealização do que um fato concreto. Os consumidores não são mais ou menos éticos que as empresas; a postura moral de ambos reflete a média da sociedade, e se há um longo caminho a percorrer até tornar as práticas corporativas mais adequadas, o mesmo se pode dizer sobre as atitudes dos consumidores.

Não surpreende, portanto, que no Brasil o comportamento ético das empresas não seja ainda exatamente um fator relevante a pesar sobre as decisões de compra dos consumidores. Ao comprarem, as pessoas ignoram certas preocupações morais e restringem seus critérios de avaliação àqueles itens estritamente relacionados ao produto: preço, qualidade, estética, conforto. Exemplos recentes comprovam: as vendas da cerveja Schincariol cresceram depois que seus donos foram presos sob acusação de sonegação fiscal; o movimento na loja Daslu, acusada de crime semelhante, só decaiu em virtude da falta de produtos, e não em nome de qualquer boicote. Mesmo as grandes empresas brasileiras que desfrutam do status de eticamente responsáveis não colhem, aparentemente, maiores vantagens mercadológicas em virtude disso – no máximo, detêm uma imagem de marca mais positiva frente a seus concorrentes.

Outro exemplo cabal dessa realidade foi dado por consumidores entrevistados pela Folha de S. Paulo (04/12/05) na rua 25 de Março, na capital paulista. A 25 de Março é uma rua que reúne o comércio popular da cidade. Os preços baixos atraem consumidores de todas as classes sociais, além de micro-empresários interessados em revender os produtos por valores mais altos em outras cidades e estados. É de domínio público que nas lojas, quiosques, boxes e barraquinhas da 25 de Março, boa parte dos itens comercializados é falsificado ou fruto de contrabando.

O consumidor que freqüenta a região, obviamente, não desconhece esse dado. E o que pensa a respeito? Seguem opiniões colhidas pelo jornal:

1) “Se eu não compro, outro vai comprar”. 2) “Deixa eles (os camelôs) trabalharem. É melhor vender na calçada do que roubar”. 3) “Se é falso ou original, não me importa. O que conta mesmo é o preço”. 4) “Se fosse tudo legal e só aqui tivesse produto irregular, ainda vá lá. Mas o Brasil é isso. A 25 é o retrato do que é o país”. 5) “Aponte-me um brasileiro que não se incorpora ao esquema que ocorre hoje no país”. 6) “Quando a gente viaja e sai do país, observa quanto paga de imposto. Acho que comprar produto pirata não significa contribuir para a criminalidade. Crime é quatro assaltantes entrarem na sua casa e te prenderem lá, como ocorreu comigo há pouco tempo”. 7) “Não sou fã de pirataria, mas preço é tudo”.

Nas opiniões colhidas pela reportagem, há um bom resumo das dificuldades que enfrentam os defensores da ética empresarial na tentativa de cooptar o consumidor à defesa da causa. Pois, segundo a argumentação dos consumidores, de nada adianta andar na linha se os outros não fazem o mesmo (afirmação 1); o Brasil é um país com tantos problemas sociais que fica difícil julgar tudo ao pé-da-letra (2); todo mundo, nesse país, compactua e participa de algum ato de corrupção, portanto é demagogia condenar o comércio ilegal (4 e 5); o governo retira da sociedade mas não dá nada em troca – ou seja, sonegação não é crime, é legítima defesa (6); e consumo, no fundo, nada tem a ver com cidadania ou princípios morais, pois o que interessa é pagar menos (3 e 7). Creio que se fossem entrevistados os empresários responsáveis pelo comércio ilegal da 25 de Março, certamente as justificativas para sua atuação à margem da lei não seriam muito diferentes daquelas dadas pelos consumidores.

Ao retrato descrito pela Folha, soma-se pesquisa divulgada pelo Ibope que informa que 80% dos consumidores já compraram produtos piratas, sendo que 70% deles (em São Paulo) e 55% (no Rio) sabiam se tratar de mercadoria ilegal. Setenta e um por cento dos entrevistados concordaram com a afirmação de que a falsificação prejudica as empresas, que com isso deixam de investir e gerar empregos; e 67% disseram saber que a pirataria provoca, devido à sonegação de impostos, uma queda nos investimentos sociais do governo. Ou seja: o consumidor não só sabe que faz algo errado, como também entende a extensão dos danos decorrentes de seu ato.

Desses fatos, extraem-se dois ensinamentos. O primeiro: na sociedade de consumo, o consumidor sobrepõe-se ao cidadão. E o consumidor não defende princípios éticos ou o cumprimento da lei de maneira ampla, e sim se limita a defender interesses pessoais. Se ele se sente prejudicado, ameaçado ou enganado, reclama, boicota e fala mal. Mas se os prejuízos atingem terceiros, entende que cabe a estes – ou ao sistema legal – reivindicar seus direitos e o cumprimento das leis. Somente a ameaça de danos individuais pode demovê-lo de comprar um produto “antiético”, assim como somente benefícios que realmente valoriza – entre os quais dificilmente incluem-se outros além daqueles relacionados a preço, qualidade e funcionalidade – podem levá-lo a comprar produtos de empresas socialmente responsáveis e de postura ética comprovada.

Ademais, entre a maior parte dos consumidores predomina a visão de que um ato ilícito contra o governo e contra grandes empresas não configura uma contravenção verdadeira – e sim, no máximo, uma reação justificada contra quem, muito antes, já teria cometido alguma infração ou abuso: o Estado que cobra impostos demais, é corrupto e aplica mal os recursos de que dispõe; e as empresas, que supostamente praticam preços muito altos, sonegam impostos ou exploram trabalhadores. Ninguém se sensibiliza com reivindicações do governo ou de corporações como Sony, Nike, Gucci, Philip Morris e Ambev, ou mesmo de comerciantes que operam dentro dos parâmetros de regularidade. Todos eles, pensa o consumidor, são grandes o suficientes para se defenderem sozinhos. O consumidor reveste-se, nesse caso, de uma justificativa calcada na presunção de uma imoralidade recíproca, na qual, segundo ele, comete o dolo contra aqueles que vivem de cometê-lo. Trata-se da expressão do caráter amoral (no sentido de desprovido de julgamentos morais) do capitalismo, no qual a maximização dos benefícios individuais rege toda e qualquer decisão das partes envolvidas numa transação.

Segundo ensinamento: já complexas por natureza, as questões de cunho ético tendem a ser ainda mais difíceis no Brasil. Por uma questão cultural, impera no país uma zona de tolerância mais ampla nos julgamentos morais. Por aqui, quase nada é preto ou branco; julgamentos e avaliações são tão repletos de atenuantes e subjetivismos que as transgressões ganham sempre um tom acinzentado. Quase todas as declarações reproduzidas pela Folha são uma amostra preciosa destas dificuldades, nas quais ceticismo quanto à consciência coletiva (1), problemas sociais históricos (2), frouxidão moral generalizada (4 e 5) e desconfiança em relação ao Estado (6) se misturam para constituir pretextos que justifiquem atos individuais irregulares.

Por tudo isso, acredito que se instituições como o ETCO, Ethos e outras do gênero pretendem influenciar o comportamento dos brasileiros que compram produtos ilegais, não devem apelar somente ao cidadão, e sim também – ou principalmente - ao consumidor. É mais provável alguém deixar de comprar produtos falsos se uma campanha publicitária ridicularizar esse tipo de comportamento, por exemplo, do que se a propaganda argumentar que mercadorias ilegais alimentam a violência e o desemprego.O apelo ao cidadão deve ser entendido como um processo de longo prazo, cujos frutos serão colhidos daqui a anos ou décadas. Semelhante, por exemplo, ao que ocorreu com a sensibilização da população às questões ambientais. Mas somente sua combinação com mensagens direcionadas ao consumidor será capaz de produzir resultados mais imediatos.

Artigo originalmente publicado em Mundo do Marketing, em setembro de 2008.

© 2017 André D'Angelo - Criado pela Balz Comunicação.

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