Em defesa da publicidade
- andredangelodomini
- 2 de jan. de 2006
- 5 min de leitura

Na edição de novembro da revista Caros Amigos, Marilene Felinto escreveu sobre a publicidade. A partir de exemplos de comerciais de empresas privadas de vários setores, criticou a propaganda, concluindo o texto com uma acusação: a finalidade da publicidade seria “desinformar, truncar, desvirtuar” e “prostituir”.
Como o artigo é todo voltado ao tema e aborda diversas facetas da publicidade e da sociedade de consumo, creio que valha a pena comentar alguns de seus pontos, reproduzidos em itálico e seguidos de comentários meus. Antecipo que vejo pertinência na maior parte dos comentários de Felinto, mas discordo de sua conclusão.
1) “Não seria justo que o comercial das ‘populares’ Casas Bahia fosse exibido na televisão aberta e do elitista Itaú Personnalité na televisão paga, a cabo? Por que constranger os pobres com uma coisa que eles jamais poderão ter?”.
Aqui, Felinto trata de um aspecto-chave da sociedade de consumo. Nela, o que é massificado e democrático é o desejo de consumo; sua realização, pelo contrário, é bem mais restritiva e segmentada. Todos podem sonhar em ter o carro de luxo, a roupa cara e o eletrodoméstico mais moderno, mas só alguns poderão sonhar e realizar. O papel que a publicidade desempenha, nesse aspecto, é fundamental. É a propaganda que populariza os sonhos e desperta o desejo e o interesse por produtos que, de fato, boa parte da população não poderá adquirir.
Nisso reside o segredo do moto-contínuo da sociedade de consumo – alimentar o desejo - e, ao mesmo tempo, seu grande calcanhar-de-aquiles: é inevitável despertar um sentimento de frustração pela não-realização de ambições materiais. Esse sentimento pode, dependendo das condições materiais, emocionais e sociais de uma pessoa ou comunidade, servir como pretexto para comportamentos anti-sociais. Enquanto alguns transformam essa frustração em motivação para trabalhar e progredir materialmente, outros têm reação contrária. Outros, ainda, acabam transformando essa frustração em patologias relacionadas ao consumo (caso da compra compulsiva).
Como o desejo é infinito e as possibilidades de consumo, idem, a frustração pode não ser privilégio dos pobres – vide o caso de marginais de classe média que têm surgido no Rio e em São Paulo nos últimos anos e que alegam o desejo de “melhorar de vida” como motivação para enveredar pelo crime.
Embora a sugestão de Felinto de separar os comerciais de acordo com o público-alvo e meio de difusão já seja espontaneamente praticada, dado que os investimentos publicitários são direcionados conforme o veículo e o perfil de quem o lê/assiste/ouve, o artigo toca num ponto meritório, digno de reflexão.
2) “(...) os anúncios dos bancos são feitos para reforçar a separação e a discriminação de classe. As semelhanças estão, por exemplo, nos estrangeirismos incompreensíveis para os não iniciados no dinheiro e no suposto saber que ele traz (...) ou na idéia de ‘exclusividade’”.
Sobre isso, transcrevo aqui a opinião de dois professores norte-americanos que, em livro, trataram deste aspecto:
“(...) Na verdade, o que é transacionado no topo da pirâmide é conhecimento compartilhado (...). As mercadorias são a parte visível do iceberg. O restante está submerso na forma de nomes de pessoas, lugares, objetos e datas. (...) (D)omicílios ricos formam uma esfera de troca na qual a similaridade de estilos de vida permite fácil reciprocidade (...). Ser rico significa estar integrado numa comunidade rica. (...) Ser rico (...) implica uma rede de envolvimento mútuo (...). Ser pobre é estar isolado.” (Trechos das páginas 108 e 110 de “The world of goods”, de Mary Douglas & Baron Isherwood, 1996).
Resumindo: ser pobre não quer dizer, somente, não ter acesso às mercadorias anunciadas pela propaganda, mas também estar fora do jogo simbólico do qual elas fazem parte. O compartilhamento de idéias, interesses, conhecimentos – e de linguagem, como no caso dos estrangeirismos citados por Felinto – de fato é tão separador das classes sociais (e de outros tantos grupos, como as tribos de adolescentes) quanto a renda e o consumo efetivo de um produto.
3) “Nesse ambiente de falsa intimidade que se tenta criar (...)”.
Realmente, toda a linguagem da propaganda é voltada a esconder a relação funcional e econômica que existe entre o consumidor, a empresa e o produto, em nome de uma pretensa proximidade que ganha contornos de pessoalização: comprar é um ato de criar uma identidade pessoal e de se associar a idéias e atitudes.
4) “Há quem vá dizer que a finalidade da publicidade não é informar. Não – exatamente porque sua finalidade é desinformar, truncar, desvirtuar (...); exatamente porque a finalidade da publicidade é mesmo prostituir”.
Aqui reside minha discordância. A finalidade da publicidade é informar, seduzir, persuadir e socializar (compartilhando de maneira pública a rede de relações simbólicas do consumo). Talvez o que eu chame de informação, Marilene chame de “desinformação”; o que eu trato como sedução, ela trate como “prostituição”; e o que eu defino como persuadir, ela enxergue como “desvirtuar”. Aí entram algumas diferenças ideológicas inconciliáveis. Mas, de toda forma, faço o registro da minha opinião.
De qualquer maneira, existem mecanismos mais objetivos de avaliar a finalidade da propaganda do que as opiniões individuais, sejam as minhas ou as de Felinto. Se há desinformação, truncamento e desvirtuação, instituições vinculadas às próprias agências de propaganda (o Conar) e ao Estado (os Procons), bem como de caráter privado e sem fins lucrativos (caso do Instituto de Defesa do Consumidor, o IDEC), podem e devem intervir. Todas elas estão, constantemente, monitorando não só a publicidade, mas todas as relações de consumo, de modo a equilibrar os pratos de uma balança que, naturalmente, tende a pender mais para o lado das empresas.
Além disso, há que se lembrar que o consumidor não é ingênuo e despreparado. Ele aprende a consumir e aprende a interpretar a mensagem publicitária. Tem senso crítico e capacidade de discernimento.
Lembro, também, que todos os recursos dos quais a publicidade usa, especialmente os de linguagem, não lhe são exclusivos. São os mesmos recursos que qualquer discurso contém. Todos nós, em várias situações do diaa-dia, estamos tentando argumentar, persuadir e seduzir. Inclusive a imprensa e, especialmente, aquela de caráter fortemente opinativo, como é o caso da Caros Amigos.
Por isso, interpreto a crítica que Felinto dirige à publicidade como uma crítica ao capitalismo. Afinal, a publicidade é apenas um recurso do qual se pode lançar mão para informar, persuadir e seduzir em nome de qualquer idéia, produto ou causa. Pode ser usada – aliás, já é muito usada – por instituições sem fins lucrativos, ONGs, campanhas de interesse público, etc. Utilizar bem a propaganda é, inclusive, um pré-requisito para o sucesso de quem pretenda, através de suas idéias e ideais, tornar a sociedade mais justa, igualitária e solidária.